SING SING - GREG KWEDAR (2023)
- Antonio Roma Torres
- 18 de fev.
- 6 min de leitura
Atualizado: 19 de fev.
UM PALCO NA PRISÃO
António Roma Torres
Podemos ter dúvidas se existe como género ou sub-género cinematográfico o filme de prisão que nos submerge no meio carcerário.
Por exemplo, numa recensão ao livro Prison Movies: Cinema Behind Bars de Kevin Kehrwald (WallFlower Press, 2017), Sarah Boslaugh distingue que “enquanto os filmes de gangsters oferecem a emoção da perseguição e a oportunidade de viver fora da lei, de forma vicariante, a partir do conforto do seu sofá, os filmes sobre prisões são sobre o que acontece depois de o criminoso ser apanhado, condenado e confinado a uma instituição que, pela sua própria natureza, limita os seus movimentos e acções”. A própria apresentação da editora do livro faz notar que “muitas vezes considerado uma ramificação do filme de gangsters, o filme de prisão precede o filme de gangsters e é, em muitos aspectos, o seu oposto. Em vez de se centrar em figuras trágicas que caminham para a queda, o filme de prisão centra-se em personagens caídas que procuram a redenção”.
Na década de 1960 o cinema social liberal americano deu exemplos marcantes corporizados por Burt Lancaster, em O Prisioneiro de Alcatraz (1962) de John Franknheimer, e antes Brutalidade (1947) de Jules Dassin e argumento de Richard Brooks, ou Paul Newman, em O Presidiário (1967) de Stuart Rosenberg.
Na segunda metade da década de 1990, Frank Darabont estreou-se na realização com os sucessivos filmes de prisão, Os Condenados de Shawshank (1994) e À Espera de um Milagre (1997), que, se não conseguiram o sucesso dos oscars para que foram nomeados ou uma posterior carreira relevante para o realizador, permitiram pelo menos ao primeiro uma longa permanência até hoje no primeiro lugar do top rating dos utilizadores do IMdb (Internet Movie Database).
Na Europa, porém, Dentro (2001), de Saguenail e Regina Guimarães, e César Deve Morrer (2012), dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, levam mais longe essas propostas ao integrarem esta atenção ao universo carcerário com a câmara de filmar, debruçando-se sobre encenações de obras clássicas, Oresteia, a trilogia de tragédias gregas de Ésquilo no primeiro caso, e Júlio César de Shakespeare no segundo, por grupos de teatro constituídos em populações a cumprir penas no meio prisional.
Sing Sing (2023), segunda longa metragem de Greg Kwedar, é mais uma contribuição nesta senda, agora de novo na realidade norte-americana, e pode dizer-se que constitui em si um espectáculo muito interessante e ao mesmo tempo propõe-se como obra de pensamento em três níveis distintos que nunca se sobrepõem antes se iluminam mutuamente: o da câmara/cinematográfica, o do palco/teatral e o da consciência/existencial.
A construção narrativa do filme, embora seja linear e fácil de apreender, é mais complexa do que parecerá à primeira vista.
O filme replica uma peça, Breakin’ The Mummy’s Code, na realidade uma montagem de várias cenas propostas pelos participantes de um grupo de teatro, organizado dentro da prisão de Sing Sing no âmbito de uma iniciativa, Rehabilitation Through the Arts (RTA), que se estende a várias prisões de alta segurança na área de Nova Iorque.
Note-se que foi nesta mesma prisão de Sing Sing que Jacob Levy Moreno, o criador do psicodrama, teve o seu primeiro trabalho institucional como psiquiatra nos Estados Unidos, depois de emigrar de Viena em 1928, tendo aí prolongado as suas investigações em psicoterapia de grupo e sociometria.
No entanto o RTA, fundado em 1996 por Katherine Vockins, e o trabalho do encenador Brent Buell (ambos tendo uma figuração em Sing Sing), não se pretende definir como uma terapia, mas assenta nas próprias virtualidades do teatro como forma de performing new lives, precisamente o título do livro de Jonathan Shailor em que Buell assina o capítulo Drama in the Big House detalhando a sua visão sobre o prison theater.
A história do filme, nomeado para oscar de melhor argumento adaptado, baseia-se assim no musical Breakin’ The Mummy’s Code de Brent Buell, aliás recentemente reposto no palco em Nova Iorque, e no detalhado artigo-reportagem na revista Esquire, The Sing Sing Follies de John H. Richardson, e estabelece dois diferentes níveis: o da representação, em volta de Brent Buell (magnificamente interpretado por Paul Raci, com uma nomeação anterior para o oscar de interpretação secundária em O Som do Metal) e de todo o grupo de actores, antigos presos (nos créditos finais tornam-se mais claras as cenas do casting, usadas no próprio desenvolvimento do filme), com destaque para Clarence Maclin, a interpretar muitíssimo bem o seu próprio papel, com um extraordinário monólogo de Hamlet, sendo também co-argumentista do filme (brilhante o seu epíteto de “Divine Eye”), juntamente com outro ex-preso, John Whitfield (“Divine G”), neste caso inocente do crime pelo qual foi condenado; e o do diálogo existencial, embora também ficcionado, que o mesmo Maclin estabelece com os actores (não ex-presos), Colman Domingo (excelente no papel de “Divine G” e nomeado para oscar na interpretação principal, já com outra nomeação no ano anterior em Rustin) e Sean San José (o único não negro do cast principal e colaborador de há 30 anos de Colman Domingo, nomeadamente na Edith Productions, excelente também no papel de Mike Mike).
O filme recebeu um tribute award de Justiça Social atribuído aos quatro actores (Domingo, San José, Maclin e Raci) nos Prémios Gotham do Cinema Independente, além dos prémios de interpretação masculina principal e secundária para Domingo e Maclin, em 2 de Dezembro passado, e na realidade é no imenso desempenho dos actores que o filme ganha o seu equilíbrio principal. Mas há todo um trabalho de direcção artística e guarda-roupa que foi também cuidado no sentido de dar um tom minimalista, mas significativo ao ambiente visual, na sala de ensaios ou mesmo nas celas, que é eficazmente acompanhado pela música (o filme teve também uma nomeação para o oscar da melhor canção original, para Like a Bird de Abraham Alexander e Alejandro Quesada).
Sing Sing questiona o carácter terapêutico ou reparador das penas na justiça, embora não as conteste, mas sublinha o carácter redentor que a componente criativa pode ter mesmo no enclausuramento que a pena carcerária pressupõe. Apenas 3% dos presos envolvidos no RTA reincidiram na prática de crimes face aos 60% da população carcerária em geral.
Os dois personagens principais, Divine G, que tem também uma figuração como um outro preso que pede um autógrafo ao seu próprio personagem, e Divine Eye, vivem realidades diametralmente opostas: o primeiro inocente mas enfrentado uma exclusão de liberdade condicional, jogando-se contra si a capacidade de representar, como suspeita de que as suas respostas à comissão que o interroga na avaliação do pedido, não sejam genuínas; o segundo, que inicialmente vemos numa intimidação agressiva a um outro preso, acaba por ver idêntico pedido aceite, mesmo contra a sua expectativa. Repare-se que ambos viram rejeitados os vistos de entrada no Reino Unido para assistir à cerimónia de entrega dos BAFTA pelos antecedentes criminais (Divine G não foi ainda completamente ilibado ao contrário do que sucedeu ao fim de alguns anos com Jon Adrian JJ Velasquez, também vítima de um erro judicial e com um pequeno papel no filme).
O ponto que Sing Sing coloca a um nível que o cinema raramente tem conseguido é o da realidade e das formas que temos de aceder a ela no nosso pensamento, nas nossas emoções, mas principalmente na acção, que tantas vezes mexe com os conceitos de justiça e de terapia. Ou como diz a dada altura um dos personagens secundário também ex-preso, Sean “Dino” Johnson, “estamos aqui para nos tornarmos humanos novamente, para vestirmos roupas bonitas, dançarmos e desfrutarmos das coisas que não estão na nossa realidade”.
Essa é a essência da vida que mantém as suas características de inacabamento enquanto na vida real, como costumamos dizer, o papel de cada um parece já determinado, como se verifica pela natureza das coisas por maioria de razão numa condenação em que a vida pessoal “já transitou em julgado”. É preciso como diz Brent Buell confiar no processo e este é um filme que se apresenta muito evidentemente como autoria de todo um grupo, em que inclusivamente todos os que participaram foram pagos por igual. E o processo (e o teatro) é algo sempre em aberto, enquanto a prisão (e muitas vezes o cinema) pode ser uma realidade momentaneamente fechada.
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